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Arquidiocese de
Fortaleza

O teatro da vida nos desafia

A palavra que melhor define o meu discurso nesta noite é “agradecimento”. Agradecer nesta noite é o meu dever, dever na condição de sacerdote da Igreja Católica e de cidadão brasileiro, com a segura convicção de que somos peregrinos do absoluto em meio às coisas passageiras, a caminho do definitivo, da glória futura.

Para mim, é honraria que vai além das minhas expectativas mais otimistas de reconhecimento de meu desempenho na vida pública e sacerdotal. Confesso-me, pois, profundamente envaidecido. Esconder tal sentimento seria faltar com a sinceridade e a modéstia. Porém, percebo, com imensa humildade, que de agora em diante pesa sobre nós agraciados com esta homenagem da Academia de Letras dos Municípios do Estado do Ceará, ALMECE, uma responsabilidade ainda maior de bem desempenhar o papel social, e eu na missão sacerdotal, que nos é reservado nesse desafiante teatro da vida.

Sou um sacerdote de origem simples e humilde. Sempre procurei realizar a vontade de Deus, através da oração, da leitura e do cuidado com povo de Deus, no anúncio do Evangelho, há 23 anos, nesta cidade Fortaleza.  De alguns anos para cá também escrevendo livros e artigos para jornais, revistas e sites, na minha especialidade e função de sacerdote, é claro, com um particular cuidado de permanecer sempre fiel à fé católica (cf. 2Tm 1, 12-16). É meu dever ter consciência de que a fé é o elemento imprescindível, ao anunciar as verdades da nossa fé, como nos assegura o profeta Ezequiel: “velarei sobre as minhas ovelhas, diz o Senhor; chamarei um pastor que as conduza e serei o seu Deus (Ez, 34, 11-23).

Jesus nos indica caminhos novos e nos liberta para que possamos ir ao encontro dos irmãos e irmãs. Foi assim que ele fez com os profetas de todos os tempos – seduzindo-os e burilando-os na intimidade do seu amor e, depois, lançou-os no meio do povo, com o objetivo claro e definido: testemunhar seu amor infinito, libertador e redentor (cf. Jr 20, 7).

Hoje me credencio para esta Academia de Letras dos Municípios do Estado do Ceará (ALMECE), na qualidade de Acadêmico Honorário, certamente por causa da minha contribuição em destacar, através dos meus escritos as duas figuras humanas, profundamente marcadas pela graça de Deus, que agora destacamos, Dom Helder Pessoa Câmara e Dom Aloisio Cardeal Lorscheider, pastores que edificaram a casa de Deus, isto é, a Igreja, tendo como alicerce sólido o bem e a justiça, não cedendo às ciladas dos injustos e poderosos. Neles a profecia de Jeremias se realiza: “Eu vos darei pastores segundo o meu coração, que vos conduzam com sabedoria e inteligência” (Jr 3, 15). Anunciaram a boa nova da Salvação em toda sua plenitude, a partir da dor e do sofrimento de uma multidão de irmãos e irmãs. O entusiasmo e a mística desses grandes sacerdotes causaram e continuam a causar profundas marcas de generosidade, sempre crescente, nas pessoas que exerceram e exercem suas funções nos mais diversificados setores de nossa sociedade.

Guardemos no íntimo do coração a mensagem de otimismo e esperança, deixada por Dom Helder Câmara, o artesão da paz e cidadão do mundo, o bispo brasileiro mais influente no Concílio Vaticano II, ao abrir o caminho para a renovação, na sua mais profunda e autêntica coerência em favor dos pobres: “Se não engano, nós, os homens da Igreja, deveríamos realizar dentro da Igreja as mudanças que exigimos da sociedade”.

Falou também com extraordinária paixão que Deus é amor, em tom daquilo que lhe era muito peculiar, a poesia: “Fomos nós, as tuas criaturas que inventamos teu nome!? O nome não é, não deve ser um rótulo colado sobre as pessoas e sobre as coisas… O nome vem de dentro das coisas e pessoas, e não deve ser falso… Tem que exprimir o mais íntimo do íntimo, a própria razão de ser e existir da coisa ou da pessoa nomeada… Teu nome é e só podia ser amor”.1

Ao assumir a Arquidiocese de Olinda e Recife, em abril de 1964, afirmou: “Ninguém se escandalize quando me vir ao lado de criaturas humanas tidas como indignas e pecadoras (…). “Quem estiver sofrendo, no corpo ou na alma; quem, pobre ou rico, estiver desesperado, terá lugar especial no coração do bispo”.2

Dom Helder além de deixar uma gigantesca obra escrita, com grande sabedoria soube unir, numa síntese raríssima e feliz o místico e o homem da ação, que contemplava e escrevia ao mesmo tempo durante as madrugadas e agia pela manhã, tarde e noite. Foi um articulador da melhor qualidade; dotado de uma fé clamorosa, de uma enorme capacidade de comunicação, força e convicção inabaláveis, que saía de dentro do peito magro, daquele homem baixo e franzino na estatura, que parecia o retirante de Portinari.

Profeta dos pobres, artesão da paz, cidadão do mundo, o homem dos grandes sonhos e das grandes utopias ele o foi, a sinalizar uma verdadeira conversão, nas mudanças dos costumes, no sentido de uma melhor compreensão da Igreja, na busca de sua renovação, do seu rejuvenescimento – ao verdadeiro “aggiornamento”, ao mesmo tempo, em que devia anunciar a pessoa de Jesus Cristo, diante do clamor dos empobrecidos, dos “sem voz e sem vez”.

O grande ardor e entusiasmo desse homem, em todo seu trabalho bem articulado, no amor pela Igreja pobre e servidora, nunca podemos negar e esquecer. “Sou daqueles que tem a convicção de que os escritos de Dom Helder ainda serão fonte de inspiração na América Latina, daqui a mil anos”.3

Já Dom Aloísio, que no seu amor à verdade e no apego ao Evangelho, como critério de vida e de pastoreio, também na sua capacidade de dialogar com as classes sociais e no seu amor para com os empobrecidos, permaneceu humilde, serviçal, sendo um irmão entre irmãos.

Doçura e ternura em pessoa, alegria constante, posições corajosas e determinadas, ao mesmo tempo, pregava e anunciava o Evangelho com coragem profética e grande sabedoria.  Ele carregou sempre no seu grande coração, as alegrias, as esperanças, as tristezas, as angústias e os sofrimentos de sua querida gente (cf. GS 200). Além de travar, sem jamais se cansar, uma luta pela redemocratização, pela liberdade de expressão, pela dignidade da pessoa humana e pelo fim da tortura em nosso querido Brasil.

Dom Aloísio, ao se tornar Arcebispo de Fortaleza (1973-1995), logo de início afirmou: “A comunidade eclesial não é feudo do bispo, mas ele é o servidor de uma Igreja que se entende a si mesma como sacramento do Reino, isto é,  da presença da verdade e do amor infinito de Deus para com cada criatura humana”.4

Daí ele não compreender como algo natural e normal se conviver com a miséria e o acentuado empobrecimento do povo, que tinha como conseqüência o êxodo, o flagelo e a morte de muitos irmãos, levantando sua voz de profeta para dizer que não era vontade de Deus a realidade aqui encontrada e, ao mesmo tempo, usou de todos os meios, com uma enorme vontade de transformar essa mesma realidade, marcando profundamente a história do nosso Ceará.

“Em pleno regime de exceção, a sociedade cearense logo sentiu os efeitos dessa guinada. As camadas desfavorecidas ou marginalizadas, os sem-terra, os sem-teto, os presos políticos, os presidiários comuns, os trabalhadores em greve – ganharam aliado de peso”.5

Dom Aloísio foi o grande teólogo que sabia compreender a realidade na sua conjuntura e, com suas posições bem claras e definidas, nas análises e nas conclusões teológicas pastorais, passando para o povo um clima que favorecia e gerava uma confiança generalizada. Daí ser o Cardeal que mais se destacou em todos os Conclaves e Sínodos de que participou, gerando para o mundo inteiro e, especialmente para a imprensa, uma grande expectativa. Sua palavra corajosa e profética era acolhida por todos como uma boa notícia.

“[…] sua voz, naturalmente doce, alternava-se quando era preciso confrontar os vendilhões da justiça, quando todos os jardins da democracia corriam o risco de ser alvo de bombas atiradas pelos olhares fixos da repressão. Sua voz ecoou pelos corredores das prisões […]”.6

Quando ele se tornou bispo emérito de Aparecida, veio a pergunta: O que o senhor vai fazer? Respondeu: “Sou um simples frade menor e vou fazer o que o meu provincial mandar, porque a obediência me torna livre”.

Também nunca esquecemos sua palavra lúcida e segura, advertindo “oportuna e inoportunamente” (2Tm 4, 2), bem como sua voz mansa e corajosa em denunciar as injustiças e, sobretudo, sua ternura franciscana, nos leva a afirmar que Dom Aloísio, verdadeiramente, mora em nossos corações.

Peçamos então a Deus, que na sua infinita e inesgotável bondade, chamou Dom Helder e Dom Aloísio à missão de profetizar, que sempre os tenhamos como referência, iluminando-nos e fazendo sempre mais compreender a indispensável força de sua graça, num desejo de nos tornar capacitados a fermentar este mundo em que vivemos na sua realidade cultural e social, que tanto desafia a humanidade.

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Câmara, Dom Helder. Em tuas mãos, Senhor! Paulinas. São Paulo, 1986, p. 11.
Ibidem. Dom Helder: o artesão da paz. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2009, p. 88.
Saraiva, Geovane (padre). A ternura de um pastor: Cardeal Lorscheider. Fortaleza: Editora Celigráfica, 2009, p. 35.
Tursi, Carlo; Frencken, Geraldo (organizadores). Mantenham as lâmpadas acesas: revisitando o caminho, recriando a caminhada. Fortaleza: Edições UFC, 2008, p. 95.
Saraiva, Geovane (padre). A ternura de um pastor: Cardeal Lorscheider. Fortaleza: Editora Celigráfica, 2009, p. 22
Ibidem, p. 23

Pe Geovane Saraiva, Pároco de Santo Afonso
*pegeovane@paroquiasantoafonso.org.br
https://twitter.com/pegeovane
((85)3223-8785

Autor dos livros:
“O peregrino da Paz” e “Nascido Para as Coisas Maiores” (centenário de Dom Helder Câmara).
“A Ternura de um Pastor” (homenagem ao Cardeal Lorscheider)
“A Esperança Tem Nome” (espiritualidade e compromisso)

Uma resposta

  1. … Não encontro as palavras corretas ou que expressem minha satisfação de encontrar este artigo, que é um agradecimento sim, por uma honraria recebida? Sim. Mas, expressa uma profunda fé e reconhecimento do merito ao Deus da vida… Encontrar pastor tão apaixonado em tempos de tanta superficialidade, se constitue grande motivo de animação da fé …para a Igreja, Povo de Deus, muitas vezes, no redil mas, sentindo-se como ovelha sem Pastor.

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