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Entrevista com Dom Edmilson: “Que o povo brasileiro acorde”

Transcrevemos neste Site a entrevista que Dom Edmilson concedeu a Revista Vitória Mais. 

Dom Manuel Edmilson Cruz, Bispo emérito de Limoeiro do Norte CE.

A história de Dom Manoel Edmilson da Cruz, bispo emérito de Limoeiro do Norte, Ceará, confirma a consistência de suas posições e confirma sua coerência de vida evangélica. Homem de fé com postura clara e definida diante das situações políticas em todos os momentos. Um defensor dos valores cristãos.

vitória – Dom Edmilson, o senhor sempre se posicionou contra os abusos que favorecem a classe política. Como vê o momento atual?
Dom Edmilson – Com preocupação e esperança. Qual é o brasileiro que não está preocupado com a situação do nosso país neste momento? O Brasil é vítima neste momento de um golpe pesado contra a democracia. Depõe-se uma presidente legítima e legalmente eleita no desempenho do seu mandato e impõe-se um presidente não eleito, mal visto pelo povo, tudo indicando que houve um conluio, um acordo, entre os três poderes neste sentido e com esta intenção. A partir daí o cenário que se desenha é de um aprofundamento maior da crise: uma crise política, econômica, social e moral sem precedentes na nossa História. Os que levantavam a bandeira da moralidade como pretexto para o impeachment afundam agora na lama da corrupção, desmascarados pelas investigações. O povo sente-se traído em suas conquistas cidadãs, inseguro quanto à riqueza do país oferecida generosamente ao capital estrangeiro, ameaçado em seus direitos fundamentais de seguridade social; as medidas propostas pelo atual governo excluindo do programa escolar matérias como filosofia, sociologia, artes, educação física, música, cultura, é alguma coisa realmente inaceitável, porque é mesmo para alienar e desumanizar as pessoas, roubar-lhes a capacidade de pensar e de formar a consciência crítica, reduzindo-as a robots a serviço do sistema. Esse retorno à dependência ainda maior relativamente aos Estados unidos, dá o que pensar. Saber por exemplo que para instalar-se a ditadura aqui no Brasil o governo americano fez deslocar-se para o Atlântico Sul uma frota, o que não apenas consta, mas se prova, cujo intuito era dividir o Brasil em dois Brasis: o Brasil do Sul, do Espírito Santo até o Rio Grande do Sul, e o Brasil do Norte, incluindo toda a Amazônia. Isto o governo americano já fez em relação ao Vietnã, à Coreia, por exemplo. Os americanos não têm amigos, têm interesses. Veja, é como entregar o cordeiro às garras do lobo. Cada vez fica mais claro a que vieram os golpistas: consolidar o neo-liberalismo puro no pais, o Estado mínimo a serviço do capital. Entretanto, estou preocupado, sim, mas não estou inquieto, voltando sempre ao pensamento bíblico: “O homem se agita e Deus o conduz”. Toda crise é também possibilidade de superação. Espero que o povo brasileiro acorde enquanto é tempo e coloque o nosso país no seu verdadeiro sentido.

vitória – A PEC 55 aprovada pelo Congresso que estabelece limites para os gastos públicos para os próximos 20 anos, segundo alguns vai afetar, principalmente os mais pobres. O senhor concorda?
Dom Edmilson – Concordo? não concordo? Sem julgar intenção de ninguém, é bom lembrar, e nisto eu não generalizo, que a classe dominante do Brasil continua com mentalidade e alma de senhores de escravos e a partir dessa observação é que diria que vai afetar os pobres e os mais pobres e quase que somente a eles e a elas. Uma das razões alegadas para a necessidade da PEC e da reforma da Previdência é a falência desse órgão. Ora, sabemos que a Previdência não dá prejuízo aos cofres público, ao contrário, as aposentadorias concorrem para a circulação do dinheiro no país e em vez de déficit concorre para termos saldo. O governo esconde os verdadeiros motivos que são justamente a transferência de renda para a dívida pública, beneficiando empresários, banqueiros e investidores. Por que não começar pela redução dos salários exorbitantes dos senhores parlamentares, magistrados, e altos funcionários públicos com todas as regalias e privilégios de verbas e auxílios em tudo o que diz respeito às suas economias e aos seus familiares? Por que o povo tem que ser espoliado para enriquecer cada vez mais uma minoria? Estamos diante de um retrocesso do qual podemos esperar a volta da fome, da mortalidade infantil, de mais indigência, mais suicídios, mais ignorância, mais concentração de renda, mais desemprego, mais injustiça social. Costumo dizer que quem vota em político corrupto está votando na morte. Pois bem, a PEC 55 é a PEC da morte. Morte do sonho da juventude com uma educação de qualidade, com uma qualificação profissional, com estabilidade de vida; morte do sonho dos trabalhadores de poderem desfrutar de uma aposentadoria digna, numa idade em que ainda podem fazer outras coisas; morte de muita gente que não vai ter como cuidar de sua saúde, enfim, morte da democracia. É a palavra de Deus que diz no livro do Eclesiástico, capítulo 34, versículos 25-27: “O pão dos indigentes é a vida dos pobres, quem dele os priva é sanguinário; é assassino do próximo quem lhe rouba os meios de subsistência. Derrama sangue quem priva o assalariado do seu salário”. Há mais de dois mil anos Deus nos fala assim. Tamanha violência contra o povo brasileiro só pode ter como consequência mais violência. É constatado que a concentração de renda gera violência. É de se lamentar que a cidade de Fortaleza, por exemplo, outrora cidade tranquila, hoje está colocada entre as mais violentas do mundo. Exemplo para mostrar até que ponto chega a violência de nossa Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção: um cidadão há alguns anos matou outro cidadão e mais seus três filhos menores. Interpelado pelo delegado por que ele havia praticado tal crime, respondeu: – Eu emprestei a esse senhor uma quantia e fui lá para receber o pagamento. Uma, duas, três, quatro vezes. Na quarta vez ele não me pagou e eu o matei. – E as crianças? perguntou o delegado. A resposta: – As crianças? foram os juros. Há uns oito meses deu-se que à saída de um ônibus um adolescente matou outra pessoa. Preso imediatamente pelo guarda, este lhe perguntou: por que é que você matou esse cidadão? Ele respondeu: – Seu guarda, a minha vida é assim: eu acordo, rezo a Deus e saio pra matar, qualquer dia me matam também. É isso. Até que ponto chega a perda do sentido e do valor da vida em nossa sociedade. E o futuro que nos espera muito desafiador.

vitória – O senhor acredita que a Igreja tem o papel de intermediar a relação entre a política e o povo?
Dom Edmilson – Costuma-se dizer que a política é a arte de realizar o impossível. E para o bem de todos. A Igreja deve intermediar esse processo? Eu direi que a Igreja, obedecendo a nosso Salvador, tem o papel de formar a consciência evangélica do cidadão. Formando a consciência evangélica do cidadão e do povo, ela está cumprindo um dever realmente necessário para o bem, a prosperidade, o progresso e a paz de todos. Intermediar em casos particulares, em situações difíceis acontece às vezes. Eu mesmo já tenho sido chamado para ser mediador em casos difíceis, graças a Deus tem dado bom resultado. Agora, é preciso que sejamos sinceros e possamos ver alguns aspectos que geralmente passam despercebidos. E ao falar a esse respeito eu não tenho intenção de acusar ninguém e o que vou dizer não é propriamente uma denúncia, mas uma observação, uma advertência. A corrupção lá de cima não é prerrogativa dos que estão no poder. Mas ela tem suas raízes na própria cultura do povo brasileiro, naquilo que chamamos “jeitinho brasileiro”, a “lei de Gerson” que não é nada mais do que se tirar proveito e vantagens de certas situações. Lá em cima apenas se ampliam as oportunidades, honesta ou desonestamente, pouco importa. É por isso que eu proponho baseado em princípios da Palavra de Deus: Igreja não pode manter aliança nem explícita nem implícita com nenhum poder, deve, no entanto, colaborar de boa vontade com todos os Poderes quando se trata do bem de todos. É fácil de compreender o que eu disse se por aquele processo são desviados os recursos que se destinam por natureza ao bem de todos. É por esse processo corrupto que não se fazem ‘bem feitas’ as obras públicas. As estradas, por exemplo, um asfalto que às vezes é quase uma pintura, logo começa a esburacar-se e aí acontece que o assaltante toma a bagagem, às vezes também o carro, disso resulta morte sofrimento, iniquidade. No caso da saúde, no caso da educação e você vê por que que é que há tanto adolescente, tanta criança perdida na rua, o que dói em nossa alma e fere o nosso coração. Recordo mais uma vez a Palavra de Deus no Eclesiástico 34, 25-27.

vitória – Em 2011 o senhor recusou uma homenagem do Senado. Recusaria se fosse hoje?
Dom Edmilson – Recusaria sim, com dobrada razão. Convém esclarecer que aquela não foi a primeira vez que fui obrigado a adotar essa atitude. Ela repercutiu internacionalmente porque a tribuna era alta. Isso foi em dezembro e já em março, como me informou o senhor Arcebispo de Fortaleza, tinham sido escritos no Brasil e fora do Brasil, 28 mil artigos a esse respeito. Mas muitos anos antes, o governador do Ceará, Dr. Gonzaga Mota, construiu um colégio da rede estadual no meio pobre onde eu residia na periferia de Fortaleza, no bairro Granja Portugal. Resolveu dar o meu nome ao colégio. Eu fui lhe agradecer o gesto e lhe disse: Senhor Governador, venho agradecer o gesto, mas ao mesmo tempo declarar que eu não vou poder aceitá-lo. – Por que não? me perguntou ele. Eu lhe respondi. É que eu não vejo que o senhor faça a mesma coisa a uma merendeira que passa 20 anos no cumprimento do seu dever com alunos e alunas e não há nenhuma referência a esse fato. Quando foi que o senhor outorgou qualquer título a um negro, homem de bem, virtuoso, a um índio em igual condição?

vitória – O senhor acredita que a população amadureceu na compreensão e atitude política?
Dom Edmilson – Não só acredito, constato como uma coisa verdadeira e quase evidente. Desde que as casas parlamentares das cidades grandes passaram a transmitir através da TV o que nelas vai acontecendo, desde que o povo pode acompanhar todo esse processo é muito claro que cresceu a consciência cívica dos cidadãos e cidadãs brasileiros, num processo que continua válido. Um sacerdote italiano que acompanha tudo isso aqui em Fortaleza me declarou uma vez que o povo brasileiro nos dez últimos anos cresceu mais em consciência cívica do que o povo italiano que já conta com séculos de experiência política e passou pelos mais variados regimes políticos.

Agora uma observação final. Procurei responder conscientemente essas questões de modo mais claro que me foi possível, mas peço ao terminar, que ninguém me tenha por dono da verdade. As verdades que aqui expus são verdades, mas não são toda a verdade. Ninguém é dono da verdade e quem pensasse ser dono da verdade não teria a verdade toda. Humildemente, afetuosamente com uma saudação amiga e calorosa a todos. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

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